Trinta anos depois da travessia oceânica, Amyr Klink diz que burocracia desestimula viagens

  • 4 de setembro de 2014
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Em 1984, o navegador foi o primeiro a atravessar o Atlântico Sul em um barco a remo

SÃO PAULO – Em 2 de setembro de 1984, Amyr Klink remava, pela primeira vez, em direção à costa da Bahia desde a partida no porto de Lüderitz, na Namíbia, realizada 84 dias antes. O movimento, carregado de significado, queria dizer que a primeira travessia solitária do Atlântico Sul estava próxima de seu fim. Exatos trinta anos depois, o navegador subiu ao palco da lotada sala de conferências de uma livraria paulistana para relembrar a viagem que terminaria na Praia da Espera após mais 16 dias e renderia o best-seller “Cem dias entre o céu e o mar” (Companhia das Letras). Depois de mais de 40 viagens oceânicas, a data pode sinalizar outro desfecho para o navegador: uma possível aposentadoria. Ele, que singrou e superou mares bravios, pode naufragar diante da burocracia brasileira.

— De três anos para cá, está ficando muito complicado viajar. Se eu for esse ano para a Antártica, será a minha última temporada lá. Hoje, eu tenho que fazer um processo de licenciamento equivalente a montar uma companhia de navegação — reclamou na coletiva de imprensa.

A palestra foi a primeira de uma série de eventos realizados na capital paulista em comemoração ao 30º aniversário da travessia. Estão programadas a exposição fotográfica “Linha d’água”, realizada de 8 de setembro a 2 de outubro no Centro Cultural Conjunto Nacional, duas outras conferências, marcadas para 8 e 18 de setembro, e a festa de lançamento do livro “Antártica, 2048 — mudanças climáticas e equilíbrio global” no dia 10 do mesmo mês.

Amyr, que se tornou um renomado projetista de embarcações, fala com empolgação dos detalhes dos processos que levaram até a histórica travessia e a outros grandes feitos, como a circunavegação polar, também solitária, de 1998. Mais do que os objetivos em si, a maneira de alcançá-los parece encantar o navegador em tudo que ele faz.

— O fato é que o processo é mais fascinante do que a vitória final. Entrar em uma solução pronta, onde você não colaborou em nada, não ajudou a desenhar, não arrancou os cabelos ou não chorou por causa dela não tem muita graça — disse, enquanto bebia um suco de acerola no café da livraria e aguardava o início da palestra.

As três décadas que separam o feito, inédito e jamais repetido, dos dias de hoje foram mais do que suficientes para que uma revolução tecnológica facilite a tarefa de quem quiser igualar o navegador. Afinal, quando se lançou ao mar, Amyr teve que se valer apenas da navegação astronômica, baseada na observação do Sol e da linha do horizonte.

— Não havia aparelhos por satélite. Nos anos 80, a maioria dos navios ainda navegava por astronomia, até por uma tradição dos comandantes. Com o balançar das ondas, a precisão da minha leitura do horizonte com o sextante era muito baixa. Era uma trabalheira matemática que levava quatro, cinco horas para se chegar a um resultado precário. Em cem dias, consegui umas 55 boas posições. Hoje, com esses aparelhos, você tem essa noção absolutamente exata. Na parte da comunicação também existem grandes mudanças: há a telefonia satelital. As previsões meteorológicas de hoje também são muito mais precisas — diz ele.

As inovações tecnológicas, no entanto, também têm um legado negativo. Os avanços, para ele, estão deixando os novos navegantes acomodados:

— Há tantos recursos que as pessoas se dedicam muito menos. A minha preocupação em relação aos sujeitos que querem fazer essas experiências malucas hoje no mar é que eles desvalorizam muito a dedicação técnica e se preocupam demais com a exposição pessoal — critica.

Dedicação foi o que não faltou na jornada de Amyr. A preparação para a partida levou quase dois anos. Uma extensa bibliografia com relatos de outros exploradores foi consultada. Experientes navegadores brasileiros e estrangeiros também foram ouvidos. Cada centímetro do I.A.T., barco que completou a travessia sem maiores avarias e hoje decora o jardim da casa do navegador, foi pensado e repensado. A rota e o ponto de partida, escolhidos a dedo para que as correntes favorecessem a empreitada, também. A dieta, composta por alimentos desidratados cozinhados com a água do mar, foi desenvolvida por uma empresa especializada. Tudo contribuiu para que remar, no fim das contas, fosse o menor dos trabalhos.

Trabalho, por sinal, autorregulamentado por uma “Legislação Trabalhista de Bordo” que o navegador, de brincadeira, redigiu e assinou. Nela, ele se comprometia a remar “apenas” oito horas por dia. Horas extras não poderiam exceder 120 minutos. Ele conta que decidiu impor a rígida disciplina depois de remar períodos longos demais no início da viagem. Os turnos prolongados geraram muito cansaço e uma previsível queda de rendimento nos dias seguintes. Depois da promulgação da insólita Consolidação de Leis Trabalhistas no meio do Atlântico, os resultados foram excelentes e a viagem deslanchou.

Amyr a bordo do I.A.T., embarcação projetada especialmente para a travessia oceânica – / Divulgação
A disciplina foi mantida em todas as viagens que se seguiram nos barcos Paratii e Paratii 2. Neles, o navegador passou 13 meses sozinho na Antártica em 1990, deu a volta ao mundo pela rota mais curta em 1998, também solitário, e em 2003, com cinco tripulantes. A rigidez em alto-mar legou a Amyr a fama de ter um temperamento difícil. Ele garante que a reputação é injustificada. O rigor é fundamental para garantir a segurança de todos a bordo, argumenta:

— O problema é: eu tenho medo de morrer no mar. Para não passar por problemas, você tem que ter rigor técnico. Eu sou rigoroso porque se você relaxar, você paga. A maior alegria que eu tenho é que, dos grupos que viajam regularmente para lá (Polo Sul), nós somos os únicos que nunca perdemos tripulantes — explica.

* Matéria publicada na edição de terça-feira do “Globo a Mais”. O repórter viajou a convite da Avianca, que apoia o projeto “30 anos da travessia a remo do Atlântico”.

Fonte: O Globo
Por: Marcos Alves

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