Travessia a remo de Amyr Klink completa 30 anos sem ter sido repetida

  • 6 de setembro de 2014
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Experiência foi relatada no best seller “Cem dias entre céu e mar”

Não havia internet, celular nem GPS. Naquela pequena embarcação, para calcular a localização aproximada em alto-mar havia apenas um rudimentar sextante. Previsões meteorológicas precisas não havia, tudo o que o navegador solitário tinha era um barômetro para indicar uma tormenta. Naquele tempo, o Brasil encerrava o ciclo sombrio dos governos militares e era ainda mais burocrático do que hoje.

Foi nesse contexto improvável que o economista e navegador amador Amyr Klink lançou-se num desafio até hoje nunca repetido: atravessar o Atlântico Sul num barco sem vela nem motor, movido apenas pelas correntes marinhas e pela força de remos. No próximo dia 18, completam-se 30 anos que ele desembarcou na costa da Bahia, vindo da Namíbia, na África, após Cem dias entre céu e mar, nome do inspirado e inspirador livro que ele passou quase um ano escrevendo e virou febre literária no Brasil em 1985 – por 31 semanas seguidas esteve na lista dos dez mais vendidos de não ficção. O aniversário está sendo comemorado com uma série de eventos, em São Paulo, onde o navegador, atualmente com 59 anos, mora com a família.

Voltando a 1985, no Recife, eu ainda cursava o último ano do antigo científico. Estava me preparando para o vestibular, mas dei uma pausa nas decorebas da época para devorar em pouco mais de um fim de semana a história daquele feito. Nunca esqueci de detalhes incríveis como o delicado projeto do barco, uma casquinha de noz feita de cedro, concebida não para lutar contra o mar, mas para associar-se se a ele, capaz de fechar-se hermeticamente, ser virada e desvirada pelas ondas como um joão-teimoso. Lembro do cuidadoso estudo das correntes, do anticiclone que rege as águas do Atlântico ao Sul do Equador. Amyr remava em média 10 horas por dia, o resto do tempo eram as correntes que o traziam para casa.

Foi um estudo feito sem Google, sem Wikipedia, sem o mais rudimentar computador. 46 livros ele leu e catalogou, fez projetos e desenhos a mão. Estudou naufrágios, meteorologia, casos de sobrevivência no mar, projetos de barcos, quanta água devia levar, como cozinhar comida desidratada usando a água do mar, que cardápio deveria consumir para não sofrer problemas gastrointestinais que poderiam lhe custar a vida.

Idéia “imbecil”

Foram cerca de três anos entre pensar naquela ideia “imbecil” (a palavra é dele) e chegar à África levando num contêiner o pequeno I.A.T., feito de madeira laminada, unida por resina epóxi e vedada com borracha de geladeira. Media menos de seis metros de comprimento e estava pronto para enfrentar 3.500 milhas náuticas. Três vezes a proeza fora tentada, três vezes frustrada. Em duas delas, os aventureiros jamais foram encontrados. No Atlântico Norte, um francês já havia conseguido, mas a distância ali é 1.200 milhas menor.

Amyr, filho de mãe sueca e pai libanês, encheu 45 páginas com a sua exaustiva pesquisa sobre fracassos e como evitá-los. Não tinha medo de morrer, seus estudos mostravam que o pânico e não a sede ou a insolação é a maior causa de morte entre náufragos. Por isso não aceita ser chamado de aventureiro. Planejou tanto, foi buscar soluções em tantos lugares, que tinha certeza de que seria possível.

O navegador diz que remar por 100 dias foi seu menor problema. “Tempestades e tubarões são mais fáceis de lidar do que a imensa burocracia no Brasil e na África”, diz. Seu último dia antes de embarcar no cargueiro que levaria o barquinho até a África do Sul foi um inferno. Brigou feio com a namorada no meio da rua, bateu num carro de funerária, escapou de ser linchado por populares quando tentou socorrer uma mulher que caiu na rua (pensaram que ele a tinha atropelado), enquanto o barco ainda estava “encalhado” na Cacex, a câmara de exportação que tinha de autorizar sua saída do país…

Quando conseguiu resolver tudo, era madrugada. Seu último compromisso foi buscar os equipamentos emprestados de radioamador (que seriam alimentados durante a travessia por paineis solares) e tomar vacina em Cumbica. Teve 50 minutos para fazer e embarcar no navio de contêineres. “Desembarcar na África foi pior ainda”, lembra. Pagou um seguro de US$ 10 mil e assinou documentos renunciando qualquer socorro ou busca por seu corpo por parte de autoridades africanas. Aonde ia, era tratado como suicida.

Olhando para trás, ele diz que, depois de tudo aquilo, “foi um alívio começar a remar”, mesmo debaixo de nevoeiro e em meio a ondas agitadas no porto de Lüderitz. Sua primeira grande façanha foi vencer a tenebrosa Costa dos Esqueletos – o nome não deixa dúvidas de quão arriscado é navegar por ali. Até os portugueses em 1500 já sabiam que tinham que evitar aquele trecho da costa africana de ventos difíceis e muitos perigos. Para Amyr, vencê-la era fundamental para chegar à corrente Sul-Equatorial.

Solidariedade

Amyr Klink navegou só, mas não solitário. Conversava com radioamadores do mundo todo. “Essa rede de solidariedade foi engolida pela internet”, lamenta. É uma das coisas que ele mais sente falta. “Os radioamadores têm código de conduta. Ninguém faz discurso político, ninguém xinga, ninguém se esconde atrás de identidade falsa”, resume. A alta tecnologia que usa hoje em seus veleiros é bem-vinda, mas ele faz uma ressalva: em muitos casos ela tira o foco. Faz parecer fácil e alguns terminam por se empenhar pouco, sepultando muitos projetos. “São tantos recursos que geram acomodação. E a geração do Facebook e do Instagram está mais preocupada em postar fotos para os amigos do que em construir o barco ou prestar atenção à navegação.”

Em 1984, foi só depois que chegou em casa, em Paraty, que Amyr foi convencido pelo vizinho, o jornalista Roberto Muylaert, a botar a história no papel. Dez meses depois, chegava às bancas o livro que vendeu como pão quente – o autor, que já mudou de editora, nem sabe dizer ao certo quantas cópias, em várias línguas.

Quanto a mim, que já dei vários exemplares de presente, inclusive a meu filho, estudante de Oceanografia, pretendo ler de novo, se possível uma edição que viesse acrescida das lendárias 45 páginas de pesquisas e desenhos a mão, que foram encontradas recentemente por Marina, esposa do autor, no meio de caixas e caixas de arquivos. Fica a dica para a editora. Um detalhe que eu desconhecia: o autor esnobou um prefácio de 25 páginas escrito por Rachel de Queiroz sob encomenda da antiga editora. Doente e com dificuldade de enxergar, a consagrada autora ditou um texto que, na opinião dele, comprometia todo o relato que viria a seguir.

Para quem estiver de passagem por Sampa, a partir deste fim de semana e até 2 de outubro, o barquinho I.A.T., que pertence ao acervo do Museu Nacional do Mar (em São Francisco do Sul-SC, outro projeto bem-sucedido de Amyr), ficará à mostra no Conjunto Nacional, na Avenida Paulista, ao lado de 30 fotos das mais de 40 viagens oceânicas que empreendeu – além da travessia a remo, ele fez várias viagens a vela, solitário ou não. Já passou 22 meses entre os dois polos da terra e circunavegou o globo acima e abaixo da Convergência Antártica, onde estão os mares mais perigosos do mundo.

Na semana passada, a Livraria da Vila, no Shopping Patio Higienópolis, a Avianca e a Cia. das Letras promoveram uma palestra que teve suas vagas esgotadas dias antes. Era 2 de setembro e pude descobrir que exatamente 30 anos antes, na latitude de Pernambuco, mas a muitas milhas da costa brasileira, Amyr Klink teve a certeza de que concluiria sua façanha. “Foi ali que eu consegui mudar de direção e apontar para o Sul, rumo à Bahia, onde planejava chegar”, lembra. Um erro mínimo de cálculo e em vez da Praia da Espera, ele poderia ter ido bater no Caribe. Ou nunca mais ser achado.

Por: Maria Luiza Borges

Fonte: Jornal do Commercio

Arquivo: Jornal do Commercio – Recife-PE – 07.09.2014